terça-feira, novembro 14, 2006

Correspondência

Presa por um ímã à porta da geladeira:


Carmem, minha eterna,

Tomei a liberdade de mexer na sagrada gaveta da sua escrivaninha e pegar um papel emprestado. Este. Que uso para pedir que me perdoe, mais que minha partida, esta enorme covardia.

Vim buscar minhas coisas, como você sugeriu. Sei que esperava que viesse em horário em que pudesse encontrá-la para conversar – os sangues mais frios e as cabeças no lugar. Não quis.

Quero que você me perdoe por não ter, para olhar em teus olhos e dar explicações, a mesma coragem que tive para juntar minhas coisas e arrumar as malas. Desculpe-me, mas teus olhos feridos não sou capaz de suportar.

Sei que para você a dor foi ainda agravada pela surpresa. Talvez tivesse sido melhor que você só soubesse de mais coisas mais tarde. A mim, parecia que você se sentiu traída duas vezes. “Com um homem? Com um homem?”, você gritava.

Bem, você sabe o que gritava, não preciso repetir. Digo apenas para que você saiba que a força que ostentei para abrir mão desfazer nossos laços e nossos caminhos não é bastante para encarar todo o estrago que te causei.

Preciso me refazer também. Imagino que saiba que também ando me contorcendo. Este homem deu ao fim de nossa história o tom estarrecedor das coisas surreais.

Dê-me um tempo sem palavras. Precisamos as duas doer. Dor de homem. Por essa eu não esperava.

Daqueles,

Sylvia.


P.S: Notei que mudou o sofá de lugar. Tinha razão. Ficou melhor assim.



Em um envelope verde, junto a um embrulho entregue pelo porteiro:

Sylvia,

Você esqueceu este despertador. Trouxe-o para poupá-la do trabalho de buscá-lo. Também prefiro não te ver.

Não se preocupe. Quando cicatrizam os talhos, as palavras fluem. Se necessárias.

Por fim, não seja estúpida. Essa dor não tem nome, não é “dor de homem”. Fosse o Gustavo um cachorro, doeria o mesmo.

Carmem