segunda-feira, fevereiro 12, 2007

Vô Almeida & vó Mariazinha

Quando nasci, já eram dois velhinhos. Dois velhinhos muito simpáticos que passavam finais de semana na casa verde do caminho para a escola, onde ela havia nascido. Uma casa de varanda grande, em um quintal enorme, onde havia goiabas, bananas, jabuticabas, jacas.

Eu - que nas noites de calor, fazia esse passeio com meus pais, meus avós, meus irmãos - era sempre recebida com ofertas de bombons. Sempre havia muito doce na casa, onde os adultos jogavam bingo e as crianças se divertiam só de observar.

Trepadão. Trepadinha. Coisas que se falavam em torno daquela animada mesa de sala e que eu imaginava que não deveriam ser só da família da quina e da cartela cheia, tanto que geravam risadas. “Deve ser besteira”, pensava. E me constrangia comendo balas.

Balas, risadas, e o cheiro característico das casas que são limpas mas ficam fechadas. O cheiro, o barulho, o quintal escuro que, à noite, apavorava - tantas coisas que eu sabia que se escondiam por ali.

As outras crianças, que não conheciam aquele lugar, espalhavam boatos de que era assombrado. Eu guardava o segredo de sabê-lo encantado - e me deliciava: com o louro na janela, o fusquinha azul debaixo da parreira, os melhores saquinhos de Cosme e Damião, as aventuras na vasta selva cercada, o primeiro pé de acerola que via na vida, as xícaras em que nos serviam café e eu bebia com toda pompa, me sentindo respeitada.

“Vó, a vó Mariazinha não tem filhos?”

Teve. Um menino. Que morreu bem jovem, de leucemia e de quem ela falava como se ele estivesse em qualquer outro lugar distante que não fosse o céu. Como se pudéssemos conhecê-lo a qualquer dia. Os dois carregavam juntos aquela orfandade paterna que disfarçavam com muito açúcar. E, para inveja minha, fazia com que dessem sempre presentes melhores para os garotos. Vangloriavam-se Adrianno, meu irmão, e Cássio, meu primo.

Aqueles avós emprestados moravam em um apartamento antigo no Flamengo, cheio de fotos do filho e bibelôs, com vista linda pro Pão de Açúcar. Visitei-os ali única vez, há pouco mais de um ano, quando, por muito tempo que não os via, levei um susto ao percebe-los tão idosos.

Vô Almeida, meio desanimado, meio deprimido, estava sob os cuidados dela, que insistia para que comesse todo o almoço direitinho, com uma espécie de carinho que vi poucas vezes na vida. Acho que era uma espécie de cuidado melado, próprio das pessoas que adoram um caramelo. Ou desses amores antigos, que nascem doces e não morrem.

Vó Mariazinha saiu jovem de Arrozal e casou-se com vô Almeida, que era músico de banda. A minha vida inteira, tiveram cabelos brancos. Os dele, mais que os dela, que sempre andavam presos em um coque muito elegante. Ele sempre de calça social e camisa de botão, com um jeito quieto, e de presença firme. Ela, expansiva, faladeira, ativa e carregada das bijuterias que ela mesma fazia.

Numa dessas coincidências sem explicação da vida, acordei, hoje, com um sonho em que ele chegava à casa verde numa manhã ensolarada. Com a antiga cerca nova, as janelas escancaradas, as árvores bem cuidadas. Ele vinha devagar, com a cara iluminada. Ela – subentendia-se – estava dentro, talvez na sala.

Vô Almeida morreu hoje de manhã, não sei de quê. Mas se sou uma boa captora das histórias que não me contaram, posso dizer de que foi de chorar. Chorar os exatos 103 dias que esteve a acordar sem ela.

Se o céu existe e tem uma casa verde, ela está de portas escancaradas. É verão. Eles estão jogando bingo agora.

1 Comments:

Anonymous Anônimo said...

E eu te amo por isso.

01:08  

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