quarta-feira, agosto 30, 2006

Na onda dos partos, os bebês.

'A minha parteira favorita. Da minha parteira favorita
É-me sempre uma alegria ter nos braços um dos de Cecília. Esse, em especial, eu acaricio como se fosse meu. Ninguém me convence de que a canção não seja minha. Trato- a com as honras cabíveis ao segundo favorito de qualquer pessoa. Que venham os seus segundos favoritos. Desafio-os.

Canção Excêntrica

Ando à procura de espaço
para o desenho da vida.
Em números me embaraço
e perco sempre a medida.
Se penso encontrar saída,
em vez de abrir um compasso,
protejo-me num abraço
e gero uma despedida.

Se volto sobre meu passo,
é distância perdida.

Meu coração, coisa de aço,
começa a achar um cansaço
esta procura de espaço
para o desenho da vida.
Já por exausta e descrida
não me animo a um breve traço:
- saudosa do que não faço,
- do que faço, arrependida.

Cecília Meireles

Seria Pompeu uma parteira?

Dado o esforço em que este triúnviro aqui faz em levar o blog à frente...

Obs: Me refiro ao texto de Crassus, aí embaixo. Viu?

segunda-feira, agosto 28, 2006

Partos

Não andar sempre com um caderno à mão tem provocado em mim sintomas que julgo serem de uma doença nova: escrita reprimida. E como sofro.

Coisa que nasce para ser escrita deve estar acompanhada de papel e caneta desde os primórdios da concepção. Isso para evitar que, caso venha ao mundo prematuramente, precise ser precaraiamente amparada pelas pontas dos dedos. E mais nada.

Nas pontas dos dedos levam dias a esperar pela caneta que as venha socorrer do risco de serem esquecidas, aconchegando-as em um papel. Qualquer caneta. Qualquer papel. As palavras que chegam às pontas dos dedos só anseiam por existir. E palavra que nasce para ser escrita só existe no papel.

Nos meus dedos, há meses, formam-se enormes filas. Palavras e mais palavras concebidas, geralmente, em movimento, no meio da rua, da mesma maneira inesperadas que muitas crianças surgiram por aí.

Um movimento súbito nas entranhas. Ou em qualquer outra parte. Um movimento tão característico, uma pontada tão específica e tão brusca que, certamente, dá até uma freiada no ritmo dos passos: Opa! Acho que fiz um texto.

Nem sempre o papel está à mão. Melhor assim, às vezes. Afinal, um certo tempo separa os momentos da concepção e do nascimento. Como os bebês, as palavras precisam ser geradas com calma para que nasçam perfeitas.

Não perfeitas de impecáveis (ou dignas da imortalidade). Mas perfeitas para aquilo a que se prestam. No meu caso - boas ou ruins, não importa - para dizer aquilo que eu precisava. E causar aquele alívio que a garrafa deve sentir quando vem alguém e lhe tira a rolha: pop.

Enquanto este momento não chega, a pontada vai se acomodando e se alimentando, principalmente, de palpitações cardíacas e quase tudo o que entra pelos olhos. E vai sofrendo suas variações até que, invariavelmente, sobe.

Algumas vezes, para a boca. E se perde em conversas acaloradas sobre assuntos em que nunca havia pensado. Mas a maior parte delas sobe rumo ao braço direito, onde escorregam para as pontas dos dedos ansiando pelo objeto mágico que as fará dançar em tinta pelas folhas e registrar sua existência. É a redenção do pensamento, não importa quão ruim seja ele.

O nascer das palavras não merece nem deve ser interrompido. Não é interrompível aquilo que não é físico e surge muito de dentro. O alívio procurado, o único meio de saída, é aquele mesmo a que elas próprias se destinam. E enquanto ele não ocorre, as letras se debatem. São as contrações pré-parto.

Se as pobres crianças tivessem, desde cedo, a força das palavras, o aborto seria inviável. E haveria aquelas que pulariam para fora antes mesmo dos três meses, com o suspiro daqueles que só poderiam ter como destino a vida.

Mas já blasfemo a respeito daquilo que não sei. Até hoje, só pari palavras. E estas não são concebidas por acidente. Nem morrem por escolha daquele que as gera. Palavras têm vida e vontade próprias. E, se existem aquelas que morrem, enquanto ansiamos por seu nascimento, há também as que - sem que queiramos - brotam, violentas como um estupro. E nascem, felizes, filhas da agressão.

Atravessando o centro do Rio, sinto pontadas quase sempre. Para alguns destes seres que estão por vir, sorrio, vislumbrando uma eventual e singela beleza. Esses, invariavelmente, morrem. Não importa quantos papéis e canetas haja ao alcance.

No mesmo centro do Rio, sou violentada quase todos os dias. Sem escolha, sem explicação. Os filhos da violência eu deixo largados dentro de mim, sem direção. E são esses que me voltam em gostos picados à boca e, novamente engolidos, fazem bagunça no estômago. Indiferentes a qualquer tentativa de interrupção. São esses que me acordam do sono e me sentam à cadeira.

Pop. Estouram feito rolha pela caneta.

Ufa. Que alívio parir os deliciosos frutos dos imprevisíveis estupros da vida. Não há pernas que se fechem quando o mundo se revela. E é por eles que lamento não ter cadernos sempre à mão.