segunda-feira, agosto 13, 2007

Terra

A Terra era seca e dura e pedregosa e tinha uma cor esquisita e quente. [Era de todas as cores, porque tudo esconde minúsculos pontinhos coloridos, que ninguém nunca viu porque nunca chegou perto o suficiente. O ser humano nunca se aproxima. Pontinhos coloridos. Rosto grudado numa tela de Monet.] Era, mais que tudo, vermelha. Porque era assim que ele sentia ao olhar para ela, ao pisá-la. Um calor imenso e vermelho.

Tudo o que tinha era uma imensidão de sangue empedrado, que nunca havia perdido o calor. Estava ali por quanto tempo podia lembrar. Mas tinha uma memória muito curta. Ou talvez tivesse aparecido ali assim mesmo, de repente, sem história, sem passado. Não se lembrava de ter sido criança, nem de ter visto ali algum outro homem. Não se lembrava de ter comido ou bebido água. Aliás, não se lembrava de ter chovido.

Sabia-se dono do lugar, que sabia também ser imenso. Desde que ali surgiu, preocupava-se em andar por todo lado procurando um limite. Andava quilômetros e quilômetros em direções aleatórias até que parava, elegia outro norte e continuava andando. Seria possível dizer que andava por dias seguidos, se naquele lugar houvesse dias. Mas ali não havia tempo. Não havia noite, nem lua. Olhava para o alto e não via o sol, embora também não visse nuvens.

Cogitava (apenas cogitava) a possibilidade de estar sozinho. Mas como poderia ter certeza? Não se sentia suficientemente digno de ser dono do mundo, por mais que esse tal mundo fosse uma planície vermelha infinita. E qual a grande vantagem de reinar sozinho sobre o nada? Não se sentia orgulhoso. Também não se sentia miserável. Simplesmente não sentia. Indiferente, apenas andava.

Marcadores: , , ,

quarta-feira, agosto 01, 2007

Texto sem título e sem noção

Pronto, Bernardo. Diante da sua inércia em usar as figuras que te cedi tão cordialmente, encaixei num texto aqueles comentários a respeito da viagem de trem. Concluí que estou ficando escatológico. Aí vai:

***

Acostumou-se a ser o último. Nunca, em toda a sua vida, chegou pontualmente a lugar algum, nunca ganhou uma corrida, nunca fez um único strike no boliche, nunca foi o melhor aluno da sala, nunca conseguiu um emprego. Viveu sem jamais ter marcado um gol. Quando criança, seu corpo geomórfico já causava problemas. Era incapaz de correr sem uma taquicardia precoce, sem litros de suor a evaporar para as narinas alheias e sem provocar um pequeno terremoto ao redor. E ainda era asmático.

Entrou na estação como de costume: atrasado. Não correu. Havia já quase 30 anos que conheci as conseqüências de seus passos mais acelerados. Uma manada a solta em pleno subúrbio carioca. Um atípico deslocamento da placa tectônica sulamericana, a derrubar prédios em Kobi e causar tsunamis na Indonésia. Não acreditava na fúria da natureza. Todo desastre que via pela TV era pura aplicação da terceira lei de Newton e ele assumia sua fatia de culpa.

O vagão já estava cheio. Vislumbrou a fileira de passageiros acomodados um ao lado do outro como uma arcada dentária, um sorriso manchado de cigarro e café. Descobriu, satisfeito, que aquele esgar mal-humorado era banguela. Aproximou-se do pequeno vão. Exibiu sua enorme bunda em close para o vizinho da esquerda. Agradeceu por bunda não ter olho. Assim não precisava ver a cara de desaprovação do companheiro de viagem. Ou terá sido um olhar de desespero?

Desabou. Encaixou-se feito uma prótese mal feita. Os outros passageiros automaticamente assumiram novas e estranhas posturas, como a gelatina que envolve um gordo dedo invasor. Balançou por vários quilômetros, obrigando a todos a acompanhá-lo numa dança esquisita. E suou. As axilas são a parte mais suja do corpo humano porque são abusadas. O cu é discreto, inibido, introspectivo. Mas os sovacos, além de gostarem de aparecer, ainda têm a petulância de andar em dupla.

Balançou e suou por quarenta minutos. Foi o último a sair do trem.

Marcadores: ,