sexta-feira, novembro 23, 2007

Perigo

Ó, céus, um sentimento! Mata, mata! Não deixa esse bicho crescer. Olha! Já cresceu! Mas ainda dá pra matar. Será? Dá, dá sim. Vai lá perto. Eu não, tenho medo. Olha o tamanhão desse negócio já! Mas se não matar agora, depois será tarde demais. Não sei. Pensando bem, é até um bichinho simpático. Não é! É sim. É não! Ai, tá vindo pra cá! Parou, parou. Está só olhando. Será que morde? Parece traiçoeiro. Você sabe o que esses bichos fazem, né? Sim, soube de algumas vítimas. Relatos terríveis. Mas parece tão bonzinho. Não creio que possa ser tão perigoso. Queria ficar com ele, mas... e se crescer demais? É arriscado. E como devo alimentá-lo? Melhor não alimentá-lo. Quer saber? Melhor acabar logo com isso. Sim, sim, antes que me conquiste. Mas como? Agora já não dá mais para pisar nele, nem bater nele. Apenas sufocá-lo. Nossa, como é difícil: tem muito fôlego. Imagina se crescesse mais? Viraria um monstro. Um mostro bonito, mas, ainda assim, um monstro. Não morre. Está morrendo. Ainda demora um pouco, mas está morrendo. Para crescer, é assim do nada, num instante. Mas só morre com o tempo. O importante é não fraquejar. Não desistir. Isso, não parar de sufocá-lo. E ter a certeza que está fazendo a coisa certa.

segunda-feira, agosto 13, 2007

Terra

A Terra era seca e dura e pedregosa e tinha uma cor esquisita e quente. [Era de todas as cores, porque tudo esconde minúsculos pontinhos coloridos, que ninguém nunca viu porque nunca chegou perto o suficiente. O ser humano nunca se aproxima. Pontinhos coloridos. Rosto grudado numa tela de Monet.] Era, mais que tudo, vermelha. Porque era assim que ele sentia ao olhar para ela, ao pisá-la. Um calor imenso e vermelho.

Tudo o que tinha era uma imensidão de sangue empedrado, que nunca havia perdido o calor. Estava ali por quanto tempo podia lembrar. Mas tinha uma memória muito curta. Ou talvez tivesse aparecido ali assim mesmo, de repente, sem história, sem passado. Não se lembrava de ter sido criança, nem de ter visto ali algum outro homem. Não se lembrava de ter comido ou bebido água. Aliás, não se lembrava de ter chovido.

Sabia-se dono do lugar, que sabia também ser imenso. Desde que ali surgiu, preocupava-se em andar por todo lado procurando um limite. Andava quilômetros e quilômetros em direções aleatórias até que parava, elegia outro norte e continuava andando. Seria possível dizer que andava por dias seguidos, se naquele lugar houvesse dias. Mas ali não havia tempo. Não havia noite, nem lua. Olhava para o alto e não via o sol, embora também não visse nuvens.

Cogitava (apenas cogitava) a possibilidade de estar sozinho. Mas como poderia ter certeza? Não se sentia suficientemente digno de ser dono do mundo, por mais que esse tal mundo fosse uma planície vermelha infinita. E qual a grande vantagem de reinar sozinho sobre o nada? Não se sentia orgulhoso. Também não se sentia miserável. Simplesmente não sentia. Indiferente, apenas andava.

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quarta-feira, agosto 01, 2007

Texto sem título e sem noção

Pronto, Bernardo. Diante da sua inércia em usar as figuras que te cedi tão cordialmente, encaixei num texto aqueles comentários a respeito da viagem de trem. Concluí que estou ficando escatológico. Aí vai:

***

Acostumou-se a ser o último. Nunca, em toda a sua vida, chegou pontualmente a lugar algum, nunca ganhou uma corrida, nunca fez um único strike no boliche, nunca foi o melhor aluno da sala, nunca conseguiu um emprego. Viveu sem jamais ter marcado um gol. Quando criança, seu corpo geomórfico já causava problemas. Era incapaz de correr sem uma taquicardia precoce, sem litros de suor a evaporar para as narinas alheias e sem provocar um pequeno terremoto ao redor. E ainda era asmático.

Entrou na estação como de costume: atrasado. Não correu. Havia já quase 30 anos que conheci as conseqüências de seus passos mais acelerados. Uma manada a solta em pleno subúrbio carioca. Um atípico deslocamento da placa tectônica sulamericana, a derrubar prédios em Kobi e causar tsunamis na Indonésia. Não acreditava na fúria da natureza. Todo desastre que via pela TV era pura aplicação da terceira lei de Newton e ele assumia sua fatia de culpa.

O vagão já estava cheio. Vislumbrou a fileira de passageiros acomodados um ao lado do outro como uma arcada dentária, um sorriso manchado de cigarro e café. Descobriu, satisfeito, que aquele esgar mal-humorado era banguela. Aproximou-se do pequeno vão. Exibiu sua enorme bunda em close para o vizinho da esquerda. Agradeceu por bunda não ter olho. Assim não precisava ver a cara de desaprovação do companheiro de viagem. Ou terá sido um olhar de desespero?

Desabou. Encaixou-se feito uma prótese mal feita. Os outros passageiros automaticamente assumiram novas e estranhas posturas, como a gelatina que envolve um gordo dedo invasor. Balançou por vários quilômetros, obrigando a todos a acompanhá-lo numa dança esquisita. E suou. As axilas são a parte mais suja do corpo humano porque são abusadas. O cu é discreto, inibido, introspectivo. Mas os sovacos, além de gostarem de aparecer, ainda têm a petulância de andar em dupla.

Balançou e suou por quarenta minutos. Foi o último a sair do trem.

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segunda-feira, julho 02, 2007

Quase um hai kai

Ter raiva é como não ter cu
Acumula e um dia explode
E voa merda pra todo lado

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sexta-feira, junho 29, 2007

Uma cena de Maria Joana

_Alguém já disse que você fica bem mais bonita de cabelo solto?

A pergunta pegou-a de surpresa. Não tanto por ser, depois de semanas convivendo no mesmo ambiente de trabalho, a primeira que ele dirigia a ela. Muito mais pelo que era em si. Muito mais ainda porque vinha dele.

Não mesmo. Muito pelo contrário, foi o que teve vontade de responder. Mas, tímida, sorriu:

_ O meu cabelo? Você tem certeza?

_Tenho, outro dia vi você numa foto. Acho que fica bem mais bonita.

Ela corou. Com certeza, corou. Para disfarçar, tinha duas saídas: fazer uma piadinha ou falar meia hora sobre toda a dificuldade que tinha para tentar disfarçar a rebeldia das madeixas, o que invariavelmente despertava risadas. Daria no mesmo. Ficou no meio do caminho e deu uma respostinha clássica e sem graça:

_ Naquela foto, meu cabelo estava molhado. Se eu soltar a trança agora, você vai mudar de opinião num instante.

_ Eu acho que não.

Hum, pensou. Pegou o copo de água e saiu da cozinha, antes que ele a convencesse a se livrar do prendedor na frente de todo mundo. Uma leve picada doeu-lhe bem atrás da orelha, lugar da famosa pulga-clichê: Será?

Mas só conseguia se lembrar de todas as sugestões que recebia para que prendesse os cachos. Mesmo nos dias em que, no fracassado esforço para acertar, ela passava horas a arrumá-los cuidadosamente para poder deixá-los soltos. Mas e então. Será?

Estava a caminho do banheiro, para dar uma discreta conferida, quando foi interrompida pela força de uma constatação a respeito de outra: “Você fica bem mais bonita de cabelo solto”.

Olha... Então não era que não gostasse de elogios. Gostava sim, mas só dos que são, ao mesmo tempo, inéditos e inesperados. Ainda que discordasse deles, conseguia sentir o agradável friozinho da lisonja.

Segurou a ponta da trança por dois segundos. Será?
Acabou dando mais duas voltas no elástico pra se certificar de que continuaria presa.

Mas foi pro elevador sorrindo.

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sábado, junho 09, 2007

Nas madrugadas

Confesso. Confesso a minha promiscuidade compulsiva. Não passo uma única noite sozinho no quarto. Na minha cama tenho sempre companhia. Às vezes, num desejo insaciável, até me entrego a mais de um. E passamos horas rolando na cama e só depois de muito tarde viro e durmo. Acordo cedo, tonto de sono e querendo mais. Torço para o dia passar depressa.

Não tenho preconceitos. Pode ser novo, velho, homem ou mulher. Mas, admito, tenho meus preferidos. José e Gabriel são casos sérios. Me fazem perder noites inteiras de sono. Quando começo, não consigo mais parar e vejo a hora passar e quanto mais me entrego, mais desejo me entregar.

Mas eu sentia falta de uma presença feminina na minha cama. Até que conheci a Lygia. Meu Deus, a Lygia, minha mais recente paixão. Noite e noites embriagado com Lygia e suas palavras sacanas, sua ironia sutil, suas várias personalidades e sua maneira simples de falar de amor. "Não se arranca o bem-querer do coração", palavras dela. Lygia, quem mais seria capaz de dizer algo assim tão óbvio e, por isso mesmo, tão indizível, invisível, impensável?

Inicio mais um capítulo. As páginas se sucedem como vagões de um comboio interminável que não canso de ver passar. Os ponteiros saltam em quartos de hora e não sou capaz de fechar o livro. O sono fica cada vez mais distante e a manhã, cada vez mais próxima. Vem, minha Lygia, que parei para escrever essas bobagens e já estou morrendo de saudade.

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segunda-feira, maio 28, 2007

Trifosfato de Adenosina

O acontecimento mais marcante do dia foi a lembrança dessa substância de nome imponente. "Acho que vou até dormir quando chegar em casa", comentei. "Você está precisando de uma cama".

Nada. O que preciso mesmo é de trifosfato de adenosina. Cama eu já tenho, atrás de mim neste momento, mesmo sentado. Aliás, é muito difícil achar uma posição na cadeira quando se tem uma cama colada nas costas.

As últimas horas passaram como sonhos. Tudo na sala é envolto em névoa. A voz do professor faz eco. A minha não faz o menor sentido. Não sei porque resolvo falar e gastar minhas valiosas reservas de energia movimentando os músculos da face, fazendo esse esforço intenso de obrigar o ar a passar pelas cordas vocais. Articular a fala, que hábito desnecessário. Que vontade de grunhir.

E falo justamente sobre sonhos, num exercício de metalinguagem. E falo, e sonho, e coço, e rabisco o papel e olho ao redor e essa gente séria. Chega, cansei, está na hora de levar a cama de volta pra casa.

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