sexta-feira, novembro 23, 2007
segunda-feira, agosto 13, 2007
Terra
Tudo o que tinha era uma imensidão de sangue empedrado, que nunca havia perdido o calor. Estava ali por quanto tempo podia lembrar. Mas tinha uma memória muito curta. Ou talvez tivesse aparecido ali assim mesmo, de repente, sem história, sem passado. Não se lembrava de ter sido criança, nem de ter visto ali algum outro homem. Não se lembrava de ter comido ou bebido água. Aliás, não se lembrava de ter chovido.
Sabia-se dono do lugar, que sabia também ser imenso. Desde que ali surgiu, preocupava-se em andar por todo lado procurando um limite. Andava quilômetros e quilômetros em direções aleatórias até que parava, elegia outro norte e continuava andando. Seria possível dizer que andava por dias seguidos, se naquele lugar houvesse dias. Mas ali não havia tempo. Não havia noite, nem lua. Olhava para o alto e não via o sol, embora também não visse nuvens.
Cogitava (apenas cogitava) a possibilidade de estar sozinho. Mas como poderia ter certeza? Não se sentia suficientemente digno de ser dono do mundo, por mais que esse tal mundo fosse uma planície vermelha infinita. E qual a grande vantagem de reinar sozinho sobre o nada? Não se sentia orgulhoso. Também não se sentia miserável. Simplesmente não sentia. Indiferente, apenas andava.
quarta-feira, agosto 01, 2007
Texto sem título e sem noção
***
Acostumou-se a ser o último. Nunca, em toda a sua vida, chegou pontualmente a lugar algum, nunca ganhou uma corrida, nunca fez um único strike no boliche, nunca foi o melhor aluno da sala, nunca conseguiu um emprego. Viveu sem jamais ter marcado um gol. Quando criança, seu corpo geomórfico já causava problemas. Era incapaz de correr sem uma taquicardia precoce, sem litros de suor a evaporar para as narinas alheias e sem provocar um pequeno terremoto ao redor. E ainda era asmático.
Entrou na estação como de costume: atrasado. Não correu. Havia já quase 30 anos que conheci as conseqüências de seus passos mais acelerados. Uma manada a solta em pleno subúrbio carioca. Um atípico deslocamento da placa tectônica sulamericana, a derrubar prédios em Kobi e causar tsunamis na Indonésia. Não acreditava na fúria da natureza. Todo desastre que via pela TV era pura aplicação da terceira lei de Newton e ele assumia sua fatia de culpa.
O vagão já estava cheio. Vislumbrou a fileira de passageiros acomodados um ao lado do outro como uma arcada dentária, um sorriso manchado de cigarro e café. Descobriu, satisfeito, que aquele esgar mal-humorado era banguela. Aproximou-se do pequeno vão. Exibiu sua enorme bunda em close para o vizinho da esquerda. Agradeceu por bunda não ter olho. Assim não precisava ver a cara de desaprovação do companheiro de viagem. Ou terá sido um olhar de desespero?
Desabou. Encaixou-se feito uma prótese mal feita. Os outros passageiros automaticamente assumiram novas e estranhas posturas, como a gelatina que envolve um gordo dedo invasor. Balançou por vários quilômetros, obrigando a todos a acompanhá-lo numa dança esquisita. E suou. As axilas são a parte mais suja do corpo humano porque são abusadas. O cu é discreto, inibido, introspectivo. Mas os sovacos, além de gostarem de aparecer, ainda têm a petulância de andar em dupla.
Balançou e suou por quarenta minutos. Foi o último a sair do trem.
segunda-feira, julho 02, 2007
sexta-feira, junho 29, 2007
Uma cena de Maria Joana
_Alguém já disse que você fica bem mais bonita de cabelo solto?
A pergunta pegou-a de surpresa. Não tanto por ser, depois de semanas convivendo no mesmo ambiente de trabalho, a primeira que ele dirigia a ela. Muito mais pelo que era em si. Muito mais ainda porque vinha dele.
Não mesmo. Muito pelo contrário, foi o que teve vontade de responder. Mas, tímida, sorriu:
_ O meu cabelo? Você tem certeza?
_Tenho, outro dia vi você numa foto. Acho que fica bem mais bonita.
Ela corou. Com certeza, corou. Para disfarçar, tinha duas saídas: fazer uma piadinha ou falar meia hora sobre toda a dificuldade que tinha para tentar disfarçar a rebeldia das madeixas, o que invariavelmente despertava risadas. Daria no mesmo. Ficou no meio do caminho e deu uma respostinha clássica e sem graça:
_ Naquela foto, meu cabelo estava molhado. Se eu soltar a trança agora, você vai mudar de opinião num instante.
Hum, pensou. Pegou o copo de água e saiu da cozinha, antes que ele a convencesse a se livrar do prendedor na frente de todo mundo. Uma leve picada doeu-lhe bem atrás da orelha, lugar da famosa pulga-clichê: Será?
Mas só conseguia se lembrar de todas as sugestões que recebia para que prendesse os cachos. Mesmo nos dias em que, no fracassado esforço para acertar, ela passava horas a arrumá-los cuidadosamente para poder deixá-los soltos. Mas e então. Será?
Estava a caminho do banheiro, para dar uma discreta conferida, quando foi interrompida pela força de uma constatação a respeito de outra: “Você fica bem mais bonita de cabelo solto”.
Olha... Então não era que não gostasse de elogios. Gostava sim, mas só dos que são, ao mesmo tempo, inéditos e inesperados. Ainda que discordasse deles, conseguia sentir o agradável friozinho da lisonja.
Segurou a ponta da trança por dois segundos. Será?
Acabou dando mais duas voltas no elástico pra se certificar de que continuaria presa.
sábado, junho 09, 2007
Nas madrugadas
Não tenho preconceitos. Pode ser novo, velho, homem ou mulher. Mas, admito, tenho meus preferidos. José e Gabriel são casos sérios. Me fazem perder noites inteiras de sono. Quando começo, não consigo mais parar e vejo a hora passar e quanto mais me entrego, mais desejo me entregar.
Mas eu sentia falta de uma presença feminina na minha cama. Até que conheci a Lygia. Meu Deus, a Lygia, minha mais recente paixão. Noite e noites embriagado com Lygia e suas palavras sacanas, sua ironia sutil, suas várias personalidades e sua maneira simples de falar de amor. "Não se arranca o bem-querer do coração", palavras dela. Lygia, quem mais seria capaz de dizer algo assim tão óbvio e, por isso mesmo, tão indizível, invisível, impensável?
Inicio mais um capítulo. As páginas se sucedem como vagões de um comboio interminável que não canso de ver passar. Os ponteiros saltam em quartos de hora e não sou capaz de fechar o livro. O sono fica cada vez mais distante e a manhã, cada vez mais próxima. Vem, minha Lygia, que parei para escrever essas bobagens e já estou morrendo de saudade.
segunda-feira, maio 28, 2007
Trifosfato de Adenosina
Nada. O que preciso mesmo é de trifosfato de adenosina. Cama eu já tenho, atrás de mim neste momento, mesmo sentado. Aliás, é muito difícil achar uma posição na cadeira quando se tem uma cama colada nas costas.
As últimas horas passaram como sonhos. Tudo na sala é envolto em névoa. A voz do professor faz eco. A minha não faz o menor sentido. Não sei porque resolvo falar e gastar minhas valiosas reservas de energia movimentando os músculos da face, fazendo esse esforço intenso de obrigar o ar a passar pelas cordas vocais. Articular a fala, que hábito desnecessário. Que vontade de grunhir.
E falo justamente sobre sonhos, num exercício de metalinguagem. E falo, e sonho, e coço, e rabisco o papel e olho ao redor e essa gente séria. Chega, cansei, está na hora de levar a cama de volta pra casa.
Marcadores: aula, cama, sonho, sono, trifosfato de adenosina